Silvio Seno Chibeni
Departamento de Filosofia, Unicamp
Apresenta-se aqui uma síntese
de alguns dos tópicos importantes do
livro de Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, cuja
primeira edição apareceu em 1962. Essa síntese não visa, evidentemente, a
substituir a leitura do próprio livro, tendo caráter meramente didático e
introdutório.
Kuhn começou sua carreira acadêmica como
físico teórico, interessando-se depois por história da ciência. Ao longo das
importantes investigações que empreendeu acerca das teorias científicas
passadas, realizadas segundo uma nova perspectiva
historiográfica, que procura compreender uma teoria a partir do contexto
de sua época, e não do ponto de vista da ciência de hoje, Kuhn se deu conta de
que a concepção de ciência tradicional não se ajustava ao modo pelo qual a
ciência real nasce e se desenvolve ao longo do tempo. Essa percepção da
inadequação histórica das idéias usuais sobre a natureza da ciência o conduziu,
finalmente, à filosofia da ciência. Seus estudos nessa área apareceram
publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria a
exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Embora em
uma linguagem aparentemente acessível, Kuhn avança nele teses bastante
sofisticadas sobre o conhecimento científico e o conhecimento em geral, que
receberam críticas filosóficas diversas ao longo dos anos. Naturalmente, este
não é o lugar para adentrarmos essas discussões. Limitar-nos-emos a expor simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn e
que aglutinaram as atenções dos filósofos da ciência nas décadas subseqüentes à
publicação do livro.
A espinha dorsal da concepção kuhniana de
ciência consiste na tese de que o desenvolvimento típico de uma disciplina
científica se dá ao longo da seguinte estrutura aberta:
fase
pré-paradigmática ® ciência normal ® crise ® revolução ®
nova
ciência normal ® nova crise ® nova revolução ® ...
Daremos agora uma explicação simplificada das
noções envolvidas nessa cadeia evolutiva de uma ciência.
A fase
pré-paradigmática representa, por assim dizer, a pré-história de uma ciência,
aquele período no qual reina uma ampla divergência entre os pesquisadores, ou
grupos de pesquisadores, sobre quais fenômenos dever ser estudados, e como o
devem ser, sobre quais devem ser explicados, e segundo quais princípios
teóricos, sobre como os princípios teóricos se inter-relacionam, sobre as
regras, métodos e valores que devem direcionar a busca, descrição,
classificação e explicação de novos fenômenos, ou o desenvolvimento das
teorias, sobre quais técnicas e instrumentos podem ser utilizados, e quais
devem ser utilizados, etc. Enquanto predomina um tal estado de coisas, a
disciplina ainda não alcançou o estatuto de científica,
ou seja, não constitui uma ciência genuína.
Uma disciplina se torna uma ciência quando
adquire um paradigma, encerrando-se a
fase pré-paradigmática e iniciando-se uma fase de ciência normal. Este é o critério de demarcação proposto por Kuhn
para substituir os critérios indutivista e falseacionista. O termo ‘paradigma’ tem uma acepção
bastante elástica no texto original de Kuhn, e não podemos aqui adentrar as
sutilezas de seu significado. Em seu sentido usual, pré-kuhniano,
o termo significa ‘exemplo’, ‘modelo’. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do
indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em ‘ar’.
Kuhn percebeu que a transição para a
maturidade, para a fase científica, de uma disciplina envolve o reconhecimento,
por parte dos pesquisadores, de uma realização científica
exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos
de divergência da fase pré-paradigmática. A mecânica de Aristóteles, a óptica
de Newton, a química de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin estão entre
os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas disciplinas
adentrar a fase científica.
É difícil explicitar, especialmente em poucas
palavras, os elementos que entram na formação de um paradigma. Kuhn sustenta
mesmo que essa explicitação nunca pode ser completa. A razão disso é que o
conhecimento de um paradigma é, em parte, tácito,
adquirido pela exposição direta ao modo de fazer ciência
determinado pelo paradigma. Assim, por exemplo, é somente fazendo óptica à maneira de Newton que
se pode conhecer completamente o paradigma óptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo à maneira de
Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético.
No entanto, podemos, a título de balizamento,
considerar como partes integrantes de um paradigma: uma ontologia, que indique
o tipo de coisa fundamental que constitui a realidade; princípios teóricos
fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas
coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam sua conexão com os
fenômenos e as ligações com as teorias de domínios conexos, regras
metodológicas, padrões e valores que direcionem a articulação futura do
paradigma; exemplos concretos de aplicação da teoria; etc.
Um paradigma fornece, pois, os fundamentos
sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas atividades. Um paradigma
representa como que um “mapa” a ser usado pelos cientistas na exploração da
Natureza. As pesquisas firmemente assentadas nas teorias,
métodos e exemplos de um paradigma são chamadas por Kuhn de ciência normal. Essas pesquisas visam,
principalmente, a extensão do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica
como particularmente significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da
teoria aos fatos pela articulação ulterior da teoria e pela observação mais
precisa dos fenômenos.
Um ponto importante destacado por Kuhn é que
enquanto o “mapa” paradigmático estiver se mostrando frutífero, e não surgirem
embaraços sérios no ajuste empírico da teoria, o cientista deve persistir
tenazmente no seu compromisso com o paradigma. Embora a ciência normal seja uma
atividade altamente direcionada, e em um certo sentido
seletiva, essa restrição é essencial ao desenvolvimento da ciência. É
somente centrando sua atenção em uma gama selecionada de fenômenos e princípios
teóricos explicativos que o cientista conseguirá ir fundo no estudo da
Natureza. Nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com
sucesso na ausência de um corpo de princípios teóricos e metodológicos que
permitam seleção, avaliação e crítica do que se observa. Aqui se nota um dos
principais enganos da concepção clássica de ciência, que imaginava ser possível
fazer observações neutras. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que
fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em
“simbiose”, os primeiros sustentando as últimas e estas contribuindo para a sua
seleção, classificação, concatenação, predição e explicação. De posse de um
corpo de princípios teóricos e regras metodológicas, o cientista não precisa a
cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo, começando de princípios
básicos e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido, assim
como a relevância de cada fenômeno observado.
Kuhn entende a ciência normal como uma
atividade de resolução de “quebra-cabeças” (puzzles), já que, como eles, ela
se desenvolve segundo regras relativamente bem definidas. Só que na ciência os
quebra-cabeças nos são apresentados pela Natureza. Ao longo da exploração de um
paradigma pode ocorrer que alguns desses quebra-cabeças se mostrem de difícil
solução. O dever do cientista é insistir no emprego das regras e princípios
paradigmáticos fundamentais o quanto possa. Utilizando a analogia, não vale,
por exemplo, cortar um canto de uma peça do quebra-cabeça para que se encaixe
em uma determinada posição. Mas no caso da ciência esse apego ao paradigma, que
é essencial, como indicamos acima, não pode ser levado ao extremo. Quando
quebra-cabeças sem solução a que Kuhn denomina anomalias
se multiplicam, resistem por longos períodos aos melhores esforços dos
melhores cientistas, e incidem sobre áreas vitais da teoria paradigmática,
chegou o tempo de considerar a substituição do próprio paradigma. Nestas
situações de crise, membros mais
ousados e criativos da comunidade científica propõem alternativas de
paradigmas. Perdida a confiança no paradigma vigente, tais alternativas começam
a ser levadas a sério por um número crescente de
cientistas. Instala-se um período de discussões e divergências sobre os
fundamentos da ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase
pré-paradigmática. A diferença básica é que mesmo durante a crise o paradigma
até então adotado não é abandonado, enquanto não surgir um outro que se revele
superior a ele em praticamente todos os aspectos.
Quando um novo paradigma vem a substituir o
antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução
científica. Grande parte das teses filosóficas sofisticadas desse autor que
se tornaram alvo de polêmicas entre os especialistas ligam-se ao que ele assevera
acerca das revoluções científicas. Conforme já alertamos, não constitui
propósito destas notas adentrar esse debate.
* * *
KUHN, T. S.
The Structure of
Scientific Revolutions. 2 ed., enlarged. Chicago and London: University of Chicago Press 1970.
Fonte: http://www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/structure-sintese.htm
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